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José Scortecci, Clarice Lispector e a Revista PAN

 


A Revista PAN - Semanário de Cultura Mundial, no formato 24 x 32 cm, circulou no Brasil de 1935 até 1945, totalizando 241 edições. O primeiro número do semanário chegou às bancas em 26 de dezembro de 1935, com selo da Editorial Novidades, de propriedade de José Scortecci (23.10.1902 - 13.05.1988), de Dois Córregos, interior de São Paulo, filho do imigrante italiano Esaú Scortecci, natural de Arezzo, Toscana, Itália.

A Revista PAN tinha escritório e redação na Avenida Rio Branco, 91, 7º andar, sala 2, na cidade do Rio de Janeiro.

Tinha a pretensão de ser uma revista popular, aberta aos mais diversos ideais, procurando refletirem em suas colunas a fiel expressão do pensamento contemporâneo. O mundo vivia os embates da Segunda Guerra Mundial e a revista se propunha a consultar e traduzir jornais estrangeiros trazendo a seus leitores problemas e inquietações decorrentes deste conflito.

PAN não se limitou à simples reprodução de matéria editorial. Gerou também, em menor escala, seus próprios conteúdos, para o que contou com a colaboração de destacados escritores: Menotti Del Picchia, Benjamin Costallat, Silveira Bueno e Monteiro Lobato.

A PAN também se preocupava com outros assuntos: viagens, curiosidades, biografias, religião, medicina, naturismo, descobrimentos, biologia e novelas.

Nos seus primórdios, em 24 de setembro de 1936, um incêndio considerado na época como criminoso - a mando do empresário Assis Chateubriand - destruiu a sua novíssima máquina de rotogravura. O PAN perdeu qualidade por algum tempo e coincidência ou não na reestreia apresentava-se com uma capa incendiada: charge com a representação da Deusa da Guerra (tocha na mão) tocando fogo na Espanha. É dessa época a ajuda inestimável do empresário e jornalista Cásper Libero (1889 - 1943), que, gratuitamente, socorreu PAN, imprimindo alguns números do semanário.

Na década de 1940, na edição de 25 de maio de 1940, a, então, emergente e desconhecida escritora Clarice Lispector, publicou o conto “Triunfo”, considerado por especialistas o seu texto de estreia na literatura brasileira. 

Clarice Lispector morreu jovem, em 9 de dezembro de 1977, um dia antes de completar 57 anos de idade. Nasceu em Tchetchelnik, na Ucrânia, com o nome de batismo de Haia (Vida) Pinkhasovna Lispector. De origem judaica chegou ao Brasil com apenas dois meses de idade fugindo com seus pais e irmãos da Guerra Civil Russa de 1918 - 1921.

O semanário PAN chegou às bancas em plena conturbação política, o governo então empenhado em debelar o movimento armado da ANL (a Intentona Comunista), no dia seguinte decretando Estado de Sítio e ordenando a prisão em massa dos envolvidos no levante e supostos simpatizantes.

Foi o suficiente para Assis Chateubriand, em editorial publicado no Diário da Noite acusar o PAN de ser um órgão comunista. José Scortecci, Editor e gráfico, proprietário de PAN, com elegância, defendeu-se das acusações:

“Permita-nos o senhor Chateubriand que lhe observemos a inconveniência de exagerar e citar dados falsos. Os proprietários de PAN foram, são e serão contrários a toda ideia política ou social que preconize a violência”. 

Ao longo de sua existência o PAN nunca se livraria de ser apontado como um semanário a serviço de uma ideologia. Primeiro acusaram-no de comunista, mais tarde de fascista e num determinado momento de nazista, em função das várias reportagens sobre o Führer publicadas, incluindo capas com a sua caricatura e muitas fotos do líder alemão. 

A leitura do semanário afiança a declaração de imparcialidade do seu editor. Simpatias à parte pelas ideologias europeias em evidência, o PAN soube manter-se equidistante desse clima conturbado, ajustou o seu noticiário quando o Estado Novo estabeleceu um patamar de censura mais rígido, trafegou incólume pela política morde e assopra de Vargas: a dubiedade que marcou o seu Governo até o bombardeio do “Baependi” por submarinos alemães nas costas da Bahia.

PAN justificou-se enquanto pode, sempre reafirmando a sua imparcialidade. No recrudescer da guerra, diante de ânimos mais exaltados e a caça às bruxas (alemães, italianos e japoneses e seus descendentes) em ação, José Scortecci entregou os pontos.

O que torna PAN uma revista especial é o seu conteúdo, um diferencial que o seu fundador José Scortecci vislumbrou nos idos de 1935. O imigrante italiano antecipou-se sete anos ao que seria o modelo de Seleções de “Reader’s Digest” no Brasil, ao lançar um semanário que reunia artigos e reportagens publicados em jornais e revistas pelo mundo afora.

O PAN exagerava no dimensionamento dessas fontes, estampando na sua primeira página a informação “Milhares de jornais estrangeiros são consultados e traduzidos para esta revista”. A partir de 1939 dimensionou essa consulta em mais de cinco mil publicações. Era um tempo em que se superestimavam tiragens, e nesse caso o volume de fontes, para seduzir o leitor.

Em todo caso o PAN era diferente de qualquer outra publicação brasileira da época. Na sua fase inicial reproduzia somente charges, artigos e reportagens de periódicos, em especial da Argentina e Itália, mas também da França, Inglaterra, Estados Unidos, Espanha e em menor escala da Rússia, Suécia, Suíça, China, Japão e Portugal, dentre outros países.

Esse conteúdo tornou o PAN a melhor referência de informação sobre a guerra civil espanhola, a expansão do comunismo na Europa, a consolidação do fascismo e a ascensão do nazismo, a ditadura de Salazar, a política internacional do período que antecedeu a II Guerra Mundial. Nenhuma outra publicação brasileira disponibilizou esses assuntos com a qualidade e diversidade de fontes que Scortecci proporcionou.

Mas o PAN não se limitou à simples reprodução de matéria editorial. Gerou também, em menor escala, seus próprios conteúdos, para o que contou inicialmente com a colaboração de dois destacados escritores: Menotti Del Picchia, o poeta titular da página “O Imperativo da Hora” que comentava política e costumes e Benjamin Costallat, o autor de ”Mademoiselle Cinema” livro recolhido como pornográfico e escandaloso depois de vender 60 mil exemplares. Costallat com a sua verve ácida e ao mesmo tempo bem humorada, era a pena que melhor retratava, naquele tempo, as contradições da vida social e mundana do Rio de Janeiro.

Silveira Bueno também seria colaborador assíduo com a coluna ”Cartas de Amor”, assinadas sob o pseudônimo de Frei Francisco da Simplicidade; ainda respondia perguntas dos leitores no espaço “Lições de Português”, numa parceria com a Rádio Difusora de São Paulo.

A partir de 1937 o PAN convida um outro nome polêmico para colaborar nas suas páginas, o escritor Monteiro Lobato - já engajado na luta a favor da nacionalização do petróleo. 

O PAN aos poucos se populariza, conforme previsto no seu editorial de estreia, introduzindo as seções de Horóscopo, O Mundo do Cinema e até as tirinhas do Pafuncio, personagem também presente nos jornais diários do Rio e São Paulo.

Em 19 de março de 36 Scortecci reafirmava a sua imparcialidade: “Novamente nos vemos obrigados a declarar que a revista PAN é completamente independente; não pertence ela a nenhum partido político, não defende, nem ataca ideias de nenhuma índole”.