Há um olhar para trás, sim, mas um olhar que procura fixar toda uma atmosfera de iniciação nos mistérios da vida, através do filtro da memória. Memória que privilegia o ponto de vista da criança, excluindo assim tudo que possa vir a parecer recriação arbitrária da idade adulta. Daí a inegável autenticidade das lembranças e imagens que se sucedem, página a página, como que resgatadas do subconsciente de alguém que tivesse carregado anos afora, intato, o mundo de sua infância.
Trata-se de reminiscências, como faz questão de registrar o poeta no subtítulo da obra, porém, reminiscências de verdade — não encobertas pelo véu da fantasia. Distantes, portanto, de um certo tipo de memorialismo que tende a transformar o tempo da infância em pura ficção, impregnada quase sempre de tons angelicais.
Na Linha do Cerol não apresenta semelhante deformação. No espelho das reminiscências de João Scortecci, a infância irrompe em toda a sua nudez e complexidade: por um lado, sente-se a presença de uma aura de inocência e descompromisso, por outro, toques de malícias, astúcia e mesmo sensualidade.
Reavivando personagens de sua infância, episódios de determinada época (anos 60), flagrantes da cidade natal (Fortaleza), João Scortecci faz história por intermédio do verso. E é como se trouxesse à tona um passado ainda recente, um modo de vida que hoje não existe mais. O texto tem passagens saborosas, suscitando não raro uma sensação de estranhamento pela feliz utilização de termos próprios do universo infantil, às vezes regionais.
O poeta, que sempre foi um praticante da expressão enxuta, a ela permanece fiel em Na Linha do Cerol. Mais: avança no processo de contenção, além de valer-se com maior frequência de símbolos e alusões, sem qualquer prejuízo para a clareza da escrita. Antes, a economia de meios é valorizada por uma maior transparência da linguagem, em comparação com suas obras precedentes.
A título de ilustração, segue-se o último poema do volume:
E por que a arraia não alçou voo?
Não há respostas
para o passado.
Hoje diria: faltou-me água espraiada do Pajeú.
Poção mágica.
Com ela pude fazer a maior das arraias
de lancear arrepios
até então adormecida em reminiscências
Na Linha do Cerol.
Os prefácios, assinados por Fábio Lucas e Caio Porfírio Carneiro, iluminam o texto de forma a realçar-lhe as qualidades ostensivas, bem como aquelas menos aparentes.
Na Linha do Cerol é livro que merece ser lido e relido. João Scortecci imprimiu às suas evocações da infância coesão, graça e dinamismo fora do comum.
Samuel Penido