Na Linha do Cerol, ao longo dela, desfilam, em traços elípticos, instantâneos vários, como num jogo de cartas dispersas, lá da infância perdida. Na Linha do Cerol deixou eternizada no céu da meninice a arraia altaneira, mas enovelou no carretel da existência momentos exatos vividos, espelhados com tanta precisão e magia que cada segmento dos quarenta e oito que compõem o livro é um retorno completo ao passado.
Cada módulo - digamos assim -, embora exponha uma face explícita e fotografia do tempo de menino, de miniconto, de documento, de reportagem... Uma amálgama só de muitos ingredientes, arco amplo que bordeja até o simbolismo, pleno daquele explosivo explícito referido – a uma reminiscência. Explosivo porque cada lembrança pinçada é uma detonação que vai fundo, resolve tudo, em extensão enorme para tão poucos versos. Porque são versos, que alcançam às vezes a linha do desabusado, como em Bandeira, mas nada igual a Bandeira, porque aqui não há o caricato.
Toda a poesia de João Scortecci possui esse traço, mais liberto aqui que nos anteriores livros do gênero porque este tema pede fôlego menos contido. Mas é o mesmo. Não é só o poeta da concisão. O seu achado é filosófico e de uma objetividade que leva ao impacto. Às vezes ele simplesmente conta, parte outras tantas quase para ferir, e, insuspeitamente, talvez intuitivamente, num imprevisto que encanta, precipita-se para o haicai.
O seu como dizer é bárbaro, nascido das raízes da terra; lírico, marca sensível dos habitantes da região; objetivo e fugidio, prosaico e psicológico, num balancear poético bem dele, onde não falta, e nem poderia faltar, o sopro simbólico. E mais. Quando necessário é indireto, esse despiste que vai do amor à observação crítica velada.
Como citar exemplos que comprovem esta variação mágica se ela é constante? Centrado o livro no papagaio lá no céu, que lhe dá lenitivo de vida e lhe devolve à infância, em torno dele – papagaio – a geografia da cidade (Fortaleza do seu tempo) se espalha, espelha-se e adquire vida cinematográfica. Tudo muito rápido, numa espécie de marcação cênica de pontos e contrapontos. Um espargir de tonalidades fortes. O Rio Pajeú – Canal polonês que corta a cidade / e as pessoas -, a quermesse na Praça Coração de Jesus, o Colégio Cristo Rei, as peraltices, as incontinências e irreverências dos primeiros arroubos eróticos, a figura popular do Frei Ambrósio, que toda a cidade conheceu, tudo vai e vem através de um visor límpido, levado e vindo pelas mãos do menino que solta aos ventos a sua arraia. Cada passagem é tão agudamente essencial que toda a vida do aluno peralta no Colégio Cristo Rei – e ela está lá por inteiro – reduz-se a meia dúzia de versos soltos. Margarida, a doce Margarida, tão dadivosa e tão ávida de caminhos pela vida e pelo mundo, é personagem inteira e acabada. Sua história triste e humaníssima deixa, neste livro, e para sempre, um rastro de saudade. O autor, para contá-la, valeu-se de pouquíssimas pinceladas:
Margarida não gostava de brincar
de esconde-esconde
nem de roda e muito menos de passar
o-anel-que-tu-me-deste-era-vidro.
Não jogava conversa fora e só dava
se fizéssemos fila por ordem de chegada.
Um dia fugiu de casa
com mala e cuia.
Voltou carioca no andar e no falar
e logo foi embora novamente.
Foi baixa na tropa.
Na Linha do Cerol treliça-se ao longo da dispersão da memória. Cada detalhe é um achado pela riqueza expressiva, assustadoramente verdadeira e palpável. Valeu-se João Scortecci da água da fonte, espargida pelas remotas lembranças. Um borrifar tão palpitante de vida que até as lacunas, as muitas lacunas, são essenciais, para o leitor, aguçada a imaginação, viva o significado delas, entre no livro e se integre no tempo e na vida vivida pelo menino.
Fui lobinho da matilha amarela.
Depois escoteiro da patrulha Leão
e craque no gol de bola Pelé.
Um dia fui goleiro de peneira lá no Pici.
Peguei até pênalti.
Naquela defesa bem colocada
foi-se o sonho de ser craque de pé.
Virei Castilho Voador.
Para que dizer mais, se disse tudo? A obra é toda assim, um segmento de pontos finais. Após cada raio de luz, nada há mais para contar.
Então não é bem a síntese e é muito mais que a essencialidade. É uma potencialidade criadora pouco vista nos quantos caminhos da criação literária. Este poeta, a um pouco objetivo lúdico, é senhor de uma força criadora invejável, que desce ao psicológico e vem ao emblemático, em voleios de riquíssimo calor humano.
A saudade neste livro permanece em fogo lento. E em fogo lento ficam também a alegria, a tristeza e as dores fugazes da infância. Há um anteparo para tudo isto: o condão (mais que a linha) que une a mão do menino à arraia solta ao vento.
Aquele vento bom de poesia, que sustenta o papagaio, corre ao longo do Pajeú, gira o carrossel da quermesse, percorre toda a cidade do chão da infância e cala fundo no coração do leitor.
Caio Porfírio Carneiro